Apenas opiniões

sábado, fevereiro 25, 2006

O triunfo da morte.

O triunfo da morte.Que tema mórbido para iniciar um sábado de carnaval.E porque não? Nosso carnaval acontece as prévias do outono,época de folhas escuras,um frio que aos poucos vai tomando as coisas,um prenúncio de gélidos caminhos. Mas o Brasil até no seu quê de morbidez prefere a festa,o retardo das reflexões, a maníaca atenção voltada ao futuro das cartomantes e jogadores de búzios. Um país de famintos otimistas aguardando a epifania do seu lema auriverde:Ordem e Progresso. E temos justamente o cotidiano oposto.
Então observo uma reprodução do quadro "triunfo da morte"do pintor Pieter Bruegel. Datada de aproximadamente 1562, a pintura não mostra cataclismos infernais onde demônios pululam. Nada disso. A chama do inferno está ao longe,ardendo e emprestando luz ao horizonte.Nosso olhar vaga entre centenas de esqueletos.Não vemos anjos vingadores,santos em triunfo. A morte está próxima da guerra.E é inescapável. Lado inferior esquerdo,um rei tombado contempla a ampulheta sustentada pelo magérrimo mensageiro. Outro esqueleto vestido com uma armadura rouba os preciosos tesouros (os impostos certamente). Do lado oposto,um casal de amantes não vê a proximidade dos ceifadores. O alaúde dedilhado soa no caos. Um homem ao lado vai sacando a espada.Onde a enfiará? Que carne anima semelhantes criaturas do destino?O jogador enfia a cabeça sob a mesa.Mais acima, a direita,os fiéis de última hora entram na igreja pedindo a salvação.Igreja? Uma caixa quando muito.Aparentada aos galpões das igrejas evangélicas,uma caixa de oração. No quadro,uma armadilha. Sobre o monte,um esqueleto prepara a espada da decapitação,outro puxa pela cabeça o homem de calças vermelhas, massas de pessoas se amontoam em desespero,assombrações chegam montadas em cavalos.Nem os mortos se livram da miserável brutalidade.Sobre uma torre,esqueletos desenterram caixões.Haverão de acordar os defuntos com um susto.Um navio macabro singra o rio trazendo mais criaturas,agora vestidas em togas brancas.Curiosamente há um deles sentado ao fundo,mão no crânio.O que pensa nessa hora? Estará cansado? Desconfio que o tédio lhe acompanha. Horrorizados,perguntamos:Onde está a salvação? Os justos? Os 144? Nenhuma salvação se depreende da cena.Nenhum simbolo cristão parece afastar os monstros.Amor,dinheiro,sorte ou reputação. Todos chegaram nus.Partirão desnudos e apavorados.
Alguns verão o final dos tempos. Infelizmente aqui,Bruegel se limita a não edificar.Seu quadro não alimenta as esperanças dos ressentidos do mundo.Não distribui a justiça dos fracos contra os fortes,dos escravos contra os senhores.Estranho esse Bruegel. Acostumado quem sabe as tribulações de seu tempo marcado por guerras e fome parece zombar de seus contemporâneos ao mostrar-lhes uma cena mais próxima da realidade do que gostariam de admitir. Amesquinhados na trama do dia a dia,os homens deixam seu tempo passar com generosidade. Brugel construiria hoje um carro alegórico? Que pavores destilaria em pinceladas como espelhos de nossa alma moderna? Onde a morte triunfaria? Homens chacoalhando bombas atadas ao corpo? Seus esqueletos ostentariam turbantes? Ao fundo a luz espectral de uma explosão atômica? E aqui entre nós,os otimistas rousseauistas do Sul? Hordas descendo dos morros e tomando o asfalto? Um grande baile funk universal onde a policia dá as mãos aos senhores feudais do tráfico e empalam a população? E veriamos os politicos encurralados tendo diante das vistas a ampulheta? Os belos adolescentes da tv perfurados por mil agulhas de botox correndo para debaixo das saias das mamães "-tenho medo,mamãe"?
Que falta faz um Bruegel. Hoje apenas palhaços saem com telas sujas de sentidos raquiticos. Dançam sobre seu chão de vidro,criam túneis de material reciclado e caixas de metal polido.Quiça desejem novamente o útero bondoso das mães.Ou pertubar os mistificados com pseudo problemas cuja raiz é demasiado humana. Artistas-formigas donos de uma profundidade de poça de lama.Águas rasas e turvas simulando abismos.
O triunfo da morte já chegou e nem percebemos.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Um dia de mau humor

Acordo tarde e com um gosto ruim na boca.Olhos secos e pensamentos difusos.Não costumo tomar café pela manhã.Prefiro cuidar do desarme da bomba de prótons no estômago.Arrasto meu traseiro pela casa,depois mundo afora.Um dia inteiro vendo gente e evitando falar.Uma vez ouvi uma história curiosa sobre o pianista Glenn Gold.Conta-se que para cada momento que passava com pessoas ele costumava passar sozinho outro,numa especie de compensação. Não sei qual motivação conduzia seu comportamento (uma patologia dicionarizada no CID 10 provavelmente),mas devo admitir minha simpatia pelo hábito. Ele não tinha escolha.Eu tenho.
Num dia de mau humor eu desejo estar longe do alcance das vozes,dos olhares. Nenhuma fisionomia agrada.O paladar e o aroma das coisas parece insípido.Quero apenas chegar em casa e tomar um banho,comer algo e ver se minha taxa de glicose melhora meu humor. Mais tarde ligo a televisão com o som bem baixo ao entrar em casa.Ao contrário da realidade posso apagar os rostos com alguns comandos.Ate divirto-me mudando de canal na hora mais importante do filme,só pra exercer o controle,ser chato,fragmentar uma estórinha ruim ao negar sua linearidade aborrecida.Janto uns sanduiches pois estou preguiçoso.Sento no sofá diante da tela durante um bom tempo. Ao contrário das expectativas, a tolice da programação pouco me afeta."Hum... a coisa é mais séria". Corro para a estante de livros.Percorro as lombadas de velhos amigos imaginando qual deles conversaria comigo.Alguns ficam indiferentes.Outros recusam-se a falar comigo naquele estado e naquela hora da noite. Entretanto um deles joga o convite:"- Vamos conversar,caso suporte!" É Cioran.
Irrecusável. Ele sabe como deter minha estranha sede por absolutos.Afia meu espírito com seu ceticismo lirico e corrosivo. Poderiam pensar:"-Tal literatura há de piorar teu estado".Qual o quê. Não mesmo.Melhora-o inestimavelmente.Além do mais jamais recuso o convite amável de um velho amigo. Abro o "Breviário de decomposição". Por diabrite,abro a esmo como as pessoas que compram aqueles livrinhos perfumados de frases gentis.Como o tal "minutos de sabedoria".As primeiras frases já me fazem sorrir.Eis alguns trechos: "(...) O pensador que reflete sem ilusão sobre a realidade humana,se quer permanecer no interior do mundo, e elimina a mística como escapatória,chega a uma visão na qual se misturam a sabedoria,a amargura e a farsa;e,se escolhe a praça pública como espaço de sua solidão,emprega a sua verve zombando de seus semelhantes ou exibindo seu nojo,nojo que hoje,com o cristianismo e a polícia,já não poderíamos nos permitir.Dois mil anos de sermões e de códigos edulcoraram nosso fel; aliás,em um mundo apressado,quem se deteria para responder a nossas insolências ou para deleitar-se com nossos latidos?"
Agora começo a rir.Um riso de alívio.Compreendo a farsa.O humor azedo que me levou pela mão durante o dia agora dorme. Avançarei refeito madrugada adentro. Acordarei como uma manhã sangrenta.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Rex illiteratus est quasi asinus coronatus



Um rei iletrado é um jumento coroado

Será um kraken? Não,apenas Lula. Ele pavoneia-se,celebra a própria ignorância como se fosse uma força natural,telúrica (alguém lembra da música "Telúrica"?),destila sua lavra de pensamentos sobre a sociedade. Dançamos sua música e a do partido. damo-nos as mãos em uma grande roda enquanto o encantador toca sua flauta. Sindicaliza o Brasil e suas instituições sem a menor cerimônia transformando-as em partes do Leviatã.Pobre Hobbes.Imaginou um rei a altura do seus súditos.Pobre de nós,que o encontramos.
Quem sabe um dia com o devido distanciamento que o tempo proporciona,possamos entender os processos que levaram semelhante homem & Cia ao poder. Não que esse rebotalho ideológico estivesse de fato tão longe das engrenagens institucionais. Porém ainda não acoplados ao pescoço da democracia brasileira,ainda não expostos a luz do Sol com suas falácias e baixezas. Agora visíveis, uns espantam-se e murmuram desconsolados: Mudaram,trairam,jogaram fora os ideais éticos tão caros. Mais ao longe,gritos de ordem:Abaixo a patifaria,voltemos irmão a pureza dos nossos hábitos. Alguns prometeram cabeças. Infelizes Robespierres! Ou ainda,mentirosos.Prometeram o que jamais ousariam cumprir.
Impertinente é justo o que recorda sem orgulho, que se fomos enganados foi porque desejamos assim.Que as cartas estavam dadas desde o inicio.
E nesse momento as diabruras do nosso rei iletrado,distribuindo pão e circo aos miseráveis elevam as intenções de voto em torno do segundo mandato. Currais eleitorais recebem benefícios,estradas esburacadas são remendadas para os comícios e as torpezas continuam,expostas ao Sol como um cadáver:Fétido,podre e insepulto.

Melancolia - Albrecht Dürer
Um cometa no céu,símbolos matemáticos,um anjo segurando um compasso,sólidos platônicos,alquimia...e um olhar perdido. Em que o anjo pensa? Será talvez em alguma felicidade passada quando suas asas roçavam as ideias perfeitas? Uma saudade das vastidões por onde o cometa vaga? Spleen baudelaireano? Há um anjinho barroco também pensativo mas que não podemos levar a sério.Tão pequeno e de bochechas tolas. Deve ter fome enquanto tenta resolver as somas de um quadrado mágico,o que está debaixo do sino.
Sobre a cabeça do anjo,uma ampulheta. Mais adiante uma escada com 7 degraus (7 artes liberais, a escada de Jacob?).
Ou quem sabe apenas cansaço dessa perfeição. Participará do próximo filme do Wim Wenders? Um mistério.

ÍTACA - Constantino Kavafis
Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Constantino Kabvafis (1863-1933) in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Começando a escrever.


"Pode ser divertido",pensei comigo mesmo, alimentar um monstrinho virtual com meus pensamentos. Que seria melhor que isso:Mostrar ao mundo as pequenas e banais obsessões derramadas num papel que nem existe? Não há mal algum aqui.Só o obsessivo sofre com seus devaneios. Aos demais,o riso - Castigat ridendo mores - de quem mesmo?
"Então Fiat" - Nada de luz dessa vez,apenas obscuridades. Não é desejo meu fazer-me realmente claro. Apenas confundir. E dar vazão as opiniões de um observador,bestar pelas palavras e sentidos,reclamar do mundo, brigar com seres invisiveis,fazer ares de mau moço,detestar o xarope doce da complacência.

Vana sine viribus ira est - Quem não pode morder não mostre os dentes.

Mostrarei os meus quando o humor assim permitir.