sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Um dia de mau humor

Acordo tarde e com um gosto ruim na boca.Olhos secos e pensamentos difusos.Não costumo tomar café pela manhã.Prefiro cuidar do desarme da bomba de prótons no estômago.Arrasto meu traseiro pela casa,depois mundo afora.Um dia inteiro vendo gente e evitando falar.Uma vez ouvi uma história curiosa sobre o pianista Glenn Gold.Conta-se que para cada momento que passava com pessoas ele costumava passar sozinho outro,numa especie de compensação. Não sei qual motivação conduzia seu comportamento (uma patologia dicionarizada no CID 10 provavelmente),mas devo admitir minha simpatia pelo hábito. Ele não tinha escolha.Eu tenho.
Num dia de mau humor eu desejo estar longe do alcance das vozes,dos olhares. Nenhuma fisionomia agrada.O paladar e o aroma das coisas parece insípido.Quero apenas chegar em casa e tomar um banho,comer algo e ver se minha taxa de glicose melhora meu humor. Mais tarde ligo a televisão com o som bem baixo ao entrar em casa.Ao contrário da realidade posso apagar os rostos com alguns comandos.Ate divirto-me mudando de canal na hora mais importante do filme,só pra exercer o controle,ser chato,fragmentar uma estórinha ruim ao negar sua linearidade aborrecida.Janto uns sanduiches pois estou preguiçoso.Sento no sofá diante da tela durante um bom tempo. Ao contrário das expectativas, a tolice da programação pouco me afeta."Hum... a coisa é mais séria". Corro para a estante de livros.Percorro as lombadas de velhos amigos imaginando qual deles conversaria comigo.Alguns ficam indiferentes.Outros recusam-se a falar comigo naquele estado e naquela hora da noite. Entretanto um deles joga o convite:"- Vamos conversar,caso suporte!" É Cioran.
Irrecusável. Ele sabe como deter minha estranha sede por absolutos.Afia meu espírito com seu ceticismo lirico e corrosivo. Poderiam pensar:"-Tal literatura há de piorar teu estado".Qual o quê. Não mesmo.Melhora-o inestimavelmente.Além do mais jamais recuso o convite amável de um velho amigo. Abro o "Breviário de decomposição". Por diabrite,abro a esmo como as pessoas que compram aqueles livrinhos perfumados de frases gentis.Como o tal "minutos de sabedoria".As primeiras frases já me fazem sorrir.Eis alguns trechos: "(...) O pensador que reflete sem ilusão sobre a realidade humana,se quer permanecer no interior do mundo, e elimina a mística como escapatória,chega a uma visão na qual se misturam a sabedoria,a amargura e a farsa;e,se escolhe a praça pública como espaço de sua solidão,emprega a sua verve zombando de seus semelhantes ou exibindo seu nojo,nojo que hoje,com o cristianismo e a polícia,já não poderíamos nos permitir.Dois mil anos de sermões e de códigos edulcoraram nosso fel; aliás,em um mundo apressado,quem se deteria para responder a nossas insolências ou para deleitar-se com nossos latidos?"
Agora começo a rir.Um riso de alívio.Compreendo a farsa.O humor azedo que me levou pela mão durante o dia agora dorme. Avançarei refeito madrugada adentro. Acordarei como uma manhã sangrenta.