Apenas opiniões

sexta-feira, abril 27, 2007

Convém lembrar...

Convém lembrar caro senhor que temos medo e portanto andamos levemente em caminhos escuros.Tivessemos asas não subiriamos muito,temerosos da queda.Fôssemos ventania passaríamos cuidadosos pelas frestas e pouco ou nenhum lamento seria audivel no farfalhar das folhas.Caro senhor,somos uma especie de ratos andando num labirinto sem sentido.As vezes caem farelos de algum lugar e muitos de nós inventam danças e canções na esperança de comer novamente.Daí posso afirmar que somos um bando indecente de famintos.Temos fome de muitas coisas.Contra o frio nos esfregamos pêlos contra pêlos e ansiamos um algo mais sem nome definido - temos fome de palavras descritiveis para nossa condição precaria.Pedimos pão recheado de lenitivos para mascar com dentes de abandono.Pedimos honras lambuzadas entre dedos artriticos e na altura do peito um som qualquer que nos proteja da brutal existência das rochas.Caro senhor,não pense que há de nos deixar seguir a sorte.Não temos opções como o senhor mesmo.A máquina do mundo moi as carcaças e adubamos o solo com nossos pais sem rosto.Plantas vertiginosas alçam na direção do céu buscando ares mais limpos e nós aqui embaixo perdemos os olhares no azul profundo,quiça um dia,diremos.Amanhã quem sabe ou na semana que vem seremos mais perfeitos,imaculados,felizes e absolutamente vazios.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Hoje

"Hoje foi aquele dia que saí de casa com um porrete nas mãos espancando os postes na cidade abandonada.Queria que sentissem dor,gritassem em pânico no lugar das pessoas que foram embora.Já não lembro quando foram embora nem o porquê.Quem sabe lhes deu uma vontade coletiva de migrar,como as aves e pegaram suas coisas mais preciosas,seus filhos,gatos e cachorros e simplesmente foram-se,sem olhar pra trás.Eu é que fiquei.Não tive o estalo da caminhada.Que houve de errado? Por isso saí batendo em todos os postes,em todos os muros,estourando todas as lâmpadas e quebrando janelas.Quando estava cansado,finalmente resolvi conversar com Deus e subi no prédio mais alto-uma torre imensa e vazia no centro da cidade.Lá de cima pulei no vazio e o azul do céu me tragou de um só gole.Abri a porta do apartamento de Deus.Um lugar fedorento.Eu sabia que ele também não havia ido embora.A tv estava ligada num chuvisco,pilhas de jornais amontoados num canto da sala,as paredes gordurosas com a tinta descascando.Aquilo não via arrumação há tanto tempo...E Deus estava lá,sentado me olhando.Lembrei que estava ali pra meter o ferro nele,estava muito puto.Mas ele nem ligou.Dois caras solítários num apartamento fedido.
Ficamos ali,fumando uns cigarros,silenciosos.Amanhã será outro dia."

"Fragmentos de um diário esquecido" de A*

quarta-feira, agosto 30, 2006

Pyramid song

Hoje retirei-me do trabalho pra ver o pôr do Sol sobre a cidade.Do alto do prédio,aberto ao céu pude ver toda a cidade e seus prédios,o mar a direita,as montanhas ao sul e bem ao leste o Sol descendo como um disco. Sentei-me numa cadeira de praia e coloquei uma música pra ouvir durante a lenta descida do dia. Abri o amnesiac e escolhi Pyramid song. Uma música que faz doer velhas cicatrizes,tão perfeita e tão simples!
O céu sem nuvens foi mudando de cor e dourando a cidade,misturando o azul com outras cores até então escondidas.Lá embaixo o rio de asfalto recebia os carros em rápidos fluxos - gente indo pra casa,pedestres,ônibus lotados.Hora do frenesi começar,o mesmo movimento cotidiano,ondas de pessoas quebrando nas praias do tempo.Um dia tudo se dissipará.
A música veio e foi deixando uma saudade do Sol.Ouço-a tão pouco,por um certo pudor com meus sentimentos.Com as primeiras estrelas e a Lua crescente no céu por companhia tive nesse entardecer um raro instante de beleza,uma janela frágil atravessando a matéria do mundo e mostrando esferas insuspeitas.



I jumped in the river and what did I see?
Black-eyed angels swam with me
A moon full of stars and astral cars
All the things I used to see
All my lovers were there with me
All my past and futures
And we all went to heaven in a little row boat
There was nothing to fear and nothing to doubt

I jumped into the river
Black-eyed angels swam with me
A moon full of stars and astral cars
And all the things I used to see
All my lovers were there with me
All my past and futures
And we all went to heaven in a little row boat
There was nothing to fear and nothing to doubt

There was nothing to fear and nothing to doubt
There was nothing to fear and nothing to doubt

terça-feira, agosto 29, 2006

Passado


Abro o velho álbum e vejo as fotos de nossa turma.Isso já faz tanto tempo que uma pátina amarela cobriu as cores deixando tudo ainda mais distante. Amarelo é a cor da sabedoria? Ou será apenas do tempo? O afastamento é tão sutil.Cada peça vai para o fundo do armário,distribuidas com bolinhas de naftalina,bonés,camisas brancas,fardas escolares e meias remendadas. A maioria não cabe mais ou simplesmente encontram-se emprestáveis. Na foto estamos todos fardados,possivelmente depois da escola na casa de alguém.Sorrisos para a camera,enlaçados uns aos outros como se fosse sempre assim.As certezas dos jovens são frequentemente dogmaticas e como não deixariam de ser as nossas sobre cada maldita pedra sobre a Terra,sobre cada passo e cada pessoa? Deliberavamos cada ato com vontade,nunca dispostos à surpresa.Queriamos agir como cavalheiros num mundo de calhordas quando a calhordice não estava exatamente do lado de fora. Que estranho ver as fotos e lembrar dos momentos falsos e triviais.Haveria alguma amizade naquela altura ou seria apenas a inércia associada aos anos todos reunidos?
Forçoso admitir: Erámos incompativeis desde o ínicio e só o tempo iria desfazer a tolice de juntar homens feitos de matéria diferente num mesmo espaço. E o resultado foi a separação.Cada um mostrou seus talentos para o vilipendio,engodo e inveja. Entre os mortos e feridos ficou a amizade. Que delicia! Quebrado os laços a garganta finalmente livre em alto e bom som pode dizer as mágicas palavras:Vão a merda vocês todos! Nada mais de risadas,de cochichos pelos cantos,de esconder o desprezo.
Olhando novamente as fotos sinto uma alegria imensa:Livrei-me de vocês.Afundem no oceano sem mim.

domingo, agosto 27, 2006

Pintura (ou impressões estranhas).

As imagens estão coladas sobre o fundo.Um vidro as separa e as protege contra o vento.O mundo é uma colagem de coisas e pessoas.E o que há detrás de tudo isso? De que é feita a tela que recebe as camadas? Se resolver tirar a proteção e riscar com a unha o conjunto? Quantas pessoas morrerão e prédios desaparecerão? Há um desejo de destruição que coça as mãos diante do quadro.Coral de bárbaros urrando pela tentativa do incêndio.E a voz no rádio pede que faça e pare o mundo.Ela insiste em todas as estações - Faça e veja! Com uma espátula!
Então delicadamente retira-se o vidro,com um amor assasssino e coloca-o sobre a mesa.Um vidro separando os lados do universo.Uma tela surgida por acidente e sufocada pela vontade - eles não existem de fato,são apenas colagens sobrepostas sobre o fundo pintado.As mãos vão se aproximando dos personagens.Sua sombra escurece uma cidade.Um prédio altissimo lá na paisagem.Com a polpa do dedo indicador mexe no espigão.Apaga-o com facilidade.Lá em baixo as figuras de papel olham em unissono.Não há vozes.Vai descendo o polegar pela estrutura misturando as cores e criando uma esteira de desastre incomum.Nas janelas pequenos rostos observam o ato.
Então um último pensamento surge:Apagar a tela e depois...acender a lareira.

sábado, agosto 26, 2006

Gold com "variações Goldberg" em 1964

Ótimo encontrar tanta coisa interessante no youtube.Sou um fan completo.Agora é Gold numa rara apresentação para televisão tocando as Variações.Tem uns 8 minutos com uma breve introdução do locutor.

Glenn Gold no Youtube



Aqui Glenn Gold interpreta a "Arte do fuga" Contrapunctus 15 -final.Os jornalistas reclamavam muito da postura excêntrica de Gold,que regia no ar enquanto tocava,que cantarolava,que se mexia. Apenas extâtico como um dervixe.Como um santo.

Variações Goldberg


Comprei fones de ouvido com aquelas tecnologias absolutamente herméticas pra mim.Resolvi testa-los com algumas músicas de minha preferência imediata e acabei sendo levado madrugada adentro ouvindo coisas fabulosas,impossíveis de ouvir com as miseráveis caixas de som que possuia (mais tarde irei testar as novas). Bendita seja a tecnologia que proporciona um prazer estético apurado.Estou verdadeiramente esbasbacado com a pureza do estéreo,a espacialidade que as notas vão adquirindo e sua distribuição. Revigorou minha admiração pelas variações Goldberg tocadas por meu excêntrico favorito:Glenn Gold.A gravação é de 1982,ano da morte do pianista e sua segunda gravação das variações. A primeira foi em 1955 quando Glenn tinha 23 anos e essa segunda gravação quando tinha 50. A notável Aria mit verschiedenen veraenderungen tem sua historia envolta em lendas.A mais popular e mais verossímel conta que o embaixador da Rússia,o conde Hermann Karl von Keyserling sofria de dores que acarretavam uma insônia terrível. Nessa época contratou um jovem cravista,ex-aluno de Bach chamado Johann Gottlieb Goldberg. O embaixador solicitou ao jovem músico alguma obra de seu famoso professor para as horas insones. Assim em 1741,Bach aproveitou uma modesta sarabanda dedicada a sua segunda esposa que se apoiava na linha do baixo e progredia de Sol para Ré sustentando as 30 variações sublimes do cânone da música ocidental. Continua a lenda dizendo que o conde ficou tão contente que enviou ao mestre uma taça dourada cheia de moedas de ouro,cem luíses - o maior pagamento por uma obra que Bach recebeu em toda vida.
Se non é vero,é bene trovato:Para amenizar certas dores as variaçõe Goldberg são terapêuticas.Se não aquelas propriamente físicas, as mais cortantes,da alma. A apreciação dessa obra complexa,seu rigor formal,as linhas melódicas e uma harmonia rígidamente contrapontística pessoalmente dão-me um prazer imagístico:Os pensamentos flutuam docemente,lentos como um mel espesso deslizando num favo.Sua alegria não é epidérmica,muscular.É algo mais sutil e gracioso como um desabrochar. Duas,três ou quatro vezes de escuta,cada vez mais ao desdobra-se, as variações vão se revelando nos dedos mais sábios de Gold como uma infinitude controlada que nos abraça com cuidado para não machucar velhas feridas. Não é apropriada para pessoas frívolas,impacientes. Não é apropriada para gulosos.Deve ser respirada e até ouvida de olhos fechados onde as paisagens internas entram em ressonância com o espírito da obra.
É espantoso como a beleza arrebata e dá sentido as coisas,ao menos de maneira momentânea.
Acabei assistindo um trecho do Globo repórter onde uma mãe e seus dois filhos participavam de um coral.Os garotos,se via claramente,estavam envolvidos com o processo,não apenas como é tão comum realizando um desejo familiar ou para serem diferentes.Era perfeitamente visível o prazer dos dois e também da mãe,que resolveu estudar também. A mulher é uma diarista e isso faz a diferença.A minha impressão vendo as quase lágrimas da mulher é que a música resgatou sua vida de uma especie de mediocridade fartamente distribuida.A música lhes deu poder para ver e escutar mais que os sons do dia a dia,penetrando num reino delicado e muito humano.Não era um coral de canções populares ou regionais.Cantavam obras importantes como Carmina Burana. Senti-me contente por aquilo.Há pessoas que nascem com a alma de um senhor.Essa mulher,para mim é assim: Nasceu com um espirito de senhor e deu a seus filhos o mesmo.Nada de vitimismo.Isso é para escravos.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Um dia entre livros- parte 1

Estou prestes a sair de casa e passear na feira do livro.Passear e quem sabe ceder as pequenas tentações de comprar um livro ou dois.Irresistivel como uma garrafa de cachaça para alcoólatras. É tão mais divertido ler um livro que conversar com a maioria das pessoas... E no final das contas o livro sempre está ali pronto para a decifração. Na jornada cansativa dos dias põe-se a disposição dos olhos e das mãos com um fetiche,chega a ser sensual. Além do prazer das frases,da estrutura,as cenas desenrrolando-se na mente,um cinema sem gente atrapalhando.
Ler é solitário. Pode ser divertido ler com outras pessoas,numa roda de poesia por exemplo,entretanto a grande leitura é feita as escondidas,quase secreta e clandestina.Desligado do mundo externo,o leitor vaga entre as páginas qual andarilho buscando os sinais da estrada. A leitura é um gesto de abandono e nunca está verdadeiramente associada ao coletivo.Nas massas só reina o caos dos assobios,de um monstro de mil olhos querendo comida.
É justamente o lado ruim de uma feira de livro: Muita gente. Aproveito pra passear e ver os rostos de quem realmente gosta de ler e quem apenas finge. Fingidos folheam livros com um arzinho de enfado,ou então demonstram interesse exagerado olhando pros lados a cata de olhares curiosos. Já quem gosta se perde num mar de ansiedades.Retraídos,costumam esconder-se ao máximo com os objetos de sua paixão.E abandona-los custa-lhes um certo sofrimento,um adeus lento e elaborado com mil desculpas e promessas de um encontro futuro.
Ler é amar o que há de melhor na humanidade.