sábado, agosto 26, 2006

Variações Goldberg


Comprei fones de ouvido com aquelas tecnologias absolutamente herméticas pra mim.Resolvi testa-los com algumas músicas de minha preferência imediata e acabei sendo levado madrugada adentro ouvindo coisas fabulosas,impossíveis de ouvir com as miseráveis caixas de som que possuia (mais tarde irei testar as novas). Bendita seja a tecnologia que proporciona um prazer estético apurado.Estou verdadeiramente esbasbacado com a pureza do estéreo,a espacialidade que as notas vão adquirindo e sua distribuição. Revigorou minha admiração pelas variações Goldberg tocadas por meu excêntrico favorito:Glenn Gold.A gravação é de 1982,ano da morte do pianista e sua segunda gravação das variações. A primeira foi em 1955 quando Glenn tinha 23 anos e essa segunda gravação quando tinha 50. A notável Aria mit verschiedenen veraenderungen tem sua historia envolta em lendas.A mais popular e mais verossímel conta que o embaixador da Rússia,o conde Hermann Karl von Keyserling sofria de dores que acarretavam uma insônia terrível. Nessa época contratou um jovem cravista,ex-aluno de Bach chamado Johann Gottlieb Goldberg. O embaixador solicitou ao jovem músico alguma obra de seu famoso professor para as horas insones. Assim em 1741,Bach aproveitou uma modesta sarabanda dedicada a sua segunda esposa que se apoiava na linha do baixo e progredia de Sol para Ré sustentando as 30 variações sublimes do cânone da música ocidental. Continua a lenda dizendo que o conde ficou tão contente que enviou ao mestre uma taça dourada cheia de moedas de ouro,cem luíses - o maior pagamento por uma obra que Bach recebeu em toda vida.
Se non é vero,é bene trovato:Para amenizar certas dores as variaçõe Goldberg são terapêuticas.Se não aquelas propriamente físicas, as mais cortantes,da alma. A apreciação dessa obra complexa,seu rigor formal,as linhas melódicas e uma harmonia rígidamente contrapontística pessoalmente dão-me um prazer imagístico:Os pensamentos flutuam docemente,lentos como um mel espesso deslizando num favo.Sua alegria não é epidérmica,muscular.É algo mais sutil e gracioso como um desabrochar. Duas,três ou quatro vezes de escuta,cada vez mais ao desdobra-se, as variações vão se revelando nos dedos mais sábios de Gold como uma infinitude controlada que nos abraça com cuidado para não machucar velhas feridas. Não é apropriada para pessoas frívolas,impacientes. Não é apropriada para gulosos.Deve ser respirada e até ouvida de olhos fechados onde as paisagens internas entram em ressonância com o espírito da obra.
É espantoso como a beleza arrebata e dá sentido as coisas,ao menos de maneira momentânea.
Acabei assistindo um trecho do Globo repórter onde uma mãe e seus dois filhos participavam de um coral.Os garotos,se via claramente,estavam envolvidos com o processo,não apenas como é tão comum realizando um desejo familiar ou para serem diferentes.Era perfeitamente visível o prazer dos dois e também da mãe,que resolveu estudar também. A mulher é uma diarista e isso faz a diferença.A minha impressão vendo as quase lágrimas da mulher é que a música resgatou sua vida de uma especie de mediocridade fartamente distribuida.A música lhes deu poder para ver e escutar mais que os sons do dia a dia,penetrando num reino delicado e muito humano.Não era um coral de canções populares ou regionais.Cantavam obras importantes como Carmina Burana. Senti-me contente por aquilo.Há pessoas que nascem com a alma de um senhor.Essa mulher,para mim é assim: Nasceu com um espirito de senhor e deu a seus filhos o mesmo.Nada de vitimismo.Isso é para escravos.